5/23/2006

Retrato de um cidadão comum



Todos nós somos egoístas. Sempre. Quando Alberto chegou a essa conclusão uma sensação de choque o percorreu duas vezes. Inicialmente ele ficou abismado com seu pensamento, com a idéia de que todas as pessoas “virtuosas” do mundo na verdade se enganavam ao pensarem que as suas atitudes eticamente corretas eram feitas para os outros e não para si próprios. Posteriormente ele chocou-se com a simplicidade e força imbatíveis desse pensamento.

Ele, que sempre tinha se achado um rapaz imensamente razoável, respeitador das leis e morais que o bendito estado nação no qual ele tinha nascido determinara como corretas (embora já houvesse concluído anteriormente que as suas obrigações e direitos com um dado estado/nação/povo sejam, obviamente, impostas, pois não se escolhe onde se nasce, até onde nos é permitido ter consciência), descobriu de repente que só fazia isso para maximizar o seu prazer. Depois de mais um simples pensamento ele concluiu que, na verdade, o que ele e todos nós tentávamos a vida inteira era minimizar as nossas tristezas, já que o sentimento dominante na vida não era a alegria e sim seu oposto. Mas estou me adiantando aos fatos que levaram nosso protagonista a essa, aparentemente, absurda conclusão. Vamos a eles.

A linha de pensamento que o levou à idéia final (lembremos, a de que todos nós somos egoístas sempre) não demorou mais de uns 5 minutos, se muito. Ao entrar em um banco para sacar o dinheiro da semana havia um mendigo na porta, como tantos outros com os quais cruzamos e decidimos ignorar ou não todos os dias. Alberto evita olhar para o olho de peixe-morto do mendigo, opaco e plúmbeo. Este tipo de olhar o incomoda desde que ele se lembra, olhar pidão, de necessidade, de quem não deseja nada da vida além do consumo da próxima dose de drogas legais vendidas em qualquer canto da cidade. Mas talvez o que mais o incomode seja o cheiro, aquele de fim de festa de carnaval de rua, mijo misturado com cerveja.

Alberto já sabia que sairia irritado do local, pois certamente ia receber a pergunta por dinheiro e ia ter que ignorar ou ceder. Decidiu-se pela segunda opção dessa vez. Pegou algumas moedas antes de sair do banco e entregou para o mendigo antes mesmo da pergunta, evitando tocar na mão escura e certamente tão fedorenta quanto o resto. O mendigo agradeceu de uma maneira um pouco mais exaltada que o normal. “Produto da fome ou do vício”, pensou.

Inicialmente ele se sentiu mais leve, pensando que pelo menos alguma pequena coisa para aliviar o sofrimento do mendigo tinha sido feita. Não, ele não era ingênuo o suficiente para pensar que estava melhorando a vida dele, sabia que o que tinha feito era somente um paleativo para embotar a mente do mendigo e garantir algumas horas de existência menos sofrida. Logo depois ele começou a pensar sobre o porquê de não ter deixado mais algumas moedas para o mendigo que já ficava para trás. "Por que não mais?", Alberto pensava. Certamente cinco mesetas não iriam fazer falta para o seu orçamento razoavelmente folgado, mas ele decidiu continuar em frente sem olhar para trás. "Por que não mais???", o pensamento continuava lá, culpando-o como tantos outros que costumavam vir à sua cabeça todos os dias e colidiam com a sua ética pessoal, aprendida ou condicionada durante o início da sua vida.

Decidiu então de supetão voltar e entregar a nota recém sacada. O mendigo olhou para ele novamente com aquela cara de pena legítima comum às pessoas que dependem de esmola para viver, sem inicialmente tê-lo reconhecido como o último ser humano que havia lhe dado uma esmola. Assim que percebeu o que acontecia o mendigo agradeceu efusivamente o almoço e a cachaça recém-ganhos de mais um dos benfeitores anônimos que ele conseguia comover vez ou outra a voltarem e dar um pouco mais de dinheiro.

Bem mais aliviado, Alberto continuou caminhando lentamente, tentando encontrar o motivo da sua bondade momentânea. O primeiro pensamento que surgiu foi piedade. “Se eu estou onde estou é por mero acaso”, pensou ele. “Desejo que ele pudesse estar onde eu estou”, continuou. “Mas... Se eu estou dando esse dinheiro para ele é porque eu não desejo vê-lo sofrer? Então por que não fazer isso sempre? Metade do meu dinheiro poderia ser dividido com os pobres, e eu ainda viveria confortavelmente.” “Não”, pensou ele. “Não faço isso por ele. Faço por mim. Não quero possuir o sentimento de culpa que fatalmente me vêm quando faço algo que não gosto. Que não gosto não. Que me ensinaram a não gostar...”.

A partir desse ponto não houve mais retorno para seu modo antigo de ver a vida. Alberto concluiu que todos os atos bondosos são, na verdade, feitos para que o sentimento de culpa que alguns de nós temos ao ver um menino de rua sujo ou um vira-lata não nos assole. Nós desejamos todo o tempo escapar da culpa imposta à coleção de retalhos que chamamos de personalidade por uma ação que vá contra o que acreditamos ser certo. Mesmo a melhor relação de amizade ou o ato religioso mais sincero são feitos somente evitar a tristeza que, como todos nós sabemos, virá se não fizermos o eticamente aceitável.